Não sei quanto a vocês, mas eu considero a tortura um dos crimes mais escabrosos e abjetos de que seja capaz um ser humano. Repercutiu muito uma entrevista concedida pelo ex-balconista de livraria e ex-sex-appeal da música brega-sertaneja, Amado Batista, na qual ele afirmou ter merecido, sim, sem dúvidas, as torturas sofridas durante o período de ditadura militar no Brasil.
Valendo-se de invulgar analogia poética, o cantor popular comparou a brutalidade por que passou aos 18 anos a, nada mais, nada menos, que um justo corretivo de mãe, uma prova de amor, se não a ele próprio (suposto jovem desajuizado a serviço dos revolucionários), ao país ameaçado pelos comunistas. A confissão proferida num impensável viés pegou a muitos de surpresa (inclusive a entrevistadora), causando estranheza e estupefação.
No fundo, no fundo, acabei assolado por uma duvidazinha das mais atrozes. O que seria pior: uma mãe descompensada com um porrete na mão correndo pelos corredores da casa ou um militar torturador com um fio desencapado em punho sapecando os testículos de um estudante? Sei lá. Nas entrelinhas da entrevista de Amado Batista, eis que brota razoável a possibilidade de se apartar e dosar a maldade humana, seja ela proveniente das impacientes senhoras do lar ou dos sádicos agentes dos desgovernos militares.
Coincidentemente, foi Dona Sueli — fã inarredável de Amado Batista que há anos trabalha lá em casa — quem me contou uma marcante estória. Aos dez anos de idade, quando morava com a família na roça, Sueli e duas irmãs mais novas foram obrigadas pela mãe a comerem juntas um prato de arroz cru. Quem vacilasse, reclamasse ou choramingasse apanhava na boca até cumprir a missão.
O cruel (educativo?) castigo foi a elas impingido porque, metidas em traquinagens infantis, acabaram por derrubar uma bacia de arroz no chão de terra do quintal. Absolutamente, Dona Sueli nunca considerou que o castigo fosse merecido, mesmo assim, com paciência e gratidão, continua trocando as fraldas geriátricas da velhota e a levando periodicamente às sofríveis sessões de quimioterapia no Hospital do Câncer.
Mesmo amando o Amado Batista (e a mãe moribunda) até o tutano, Dona Sueli não aprova nem um pouco as suas revelações. Só de pensar nas atrocidades sofridas por ele nas mãos dos covardes fardados, ela sente uma repulsa profunda, similar à que sentira nos idos tempos de meninice, quando impelida a engolir aquele cardápio nada palatável, senão aos galináceos. “Come tudo, suas galinha!”, ordenava mamãe aos berros.
Difícil mesmo foi suportar ouvir “Dinamite de Amor” 20 vezes consecutivas no churrasco em comemoração aos 20 anos de casados de Dona Sueli e Seu Apolinário. Este hit de Amado Batista embalou os primórdios do namoro do casal em 1988, quando se conheceram numa festa de rodeio num parque agropecuário de Goiânia. Se, porventura, a senhora ler este texto, não me leve a mal, Dona Sueli: a picanha estava ótima, mas a trilha sonora… Aquilo, sim, foi pra mim uma tortura e tanto.
Botei a velha cachola pra funcionar e fiquei matutando quantas vezes apanhei da minha mãe. Com muito custo, recordei-me de um único bofetão que tomei na fuça (acho que eu contava uns 13), enquanto minha mãe preparava uma massa de rosca. Lembro de ter ficado com a cara lambida, lambrecada de farinha, e uma mudez que, por si só, já dizia tudo. Aquele, sim, foi um bofetão dos mais merecidos, pois nada mais significava senão um revide à altura às grosserias que eu acabara de lhe dizer.
Não sei se esta tal Comissão Nacional da Verdade vai entrar no mérito da questão, no que tange ao abrandamento da culpabilidade dos senhores torturadores, os quais, quem sabe, raciocinando bregamente, agiam nos ardilosos porões da ditadura por puro diletantismo, amor à pátria, instinto maternal, ora e essa! De minha parte, eu apoio a absolvição plena das mães, da maioria delas, para ser mais exato, pois há também as megeras, as mentecaptas, as simpatizantes de carrascos.
Quanto aos torturadores aposentados, desejo-lhes indigestos pratos de arroz cru. E que Amado Batista, este torturado, renomado e reconhecido artista popular, não me queira mal. É que eu prefiro muito mais ouvir todo aquele disfarçado repertório subversivo que fazia a cabeça da juventude sonhadora que viveu as durezas da ditadura brasileira. O resto, pra mim, é dinamite.
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