domingo, 10 de janeiro de 2010

Onde vivem os Monstros

A idade da solidão
Baseado em um clássico da literatura infantil, Onde Vivem os Monstros explora o lado maluco — e também o melancólico — da imaginação de um menino
Jerônimo Teixeira
"Que comece a bagunça", grita o menino fantasiado de lobo e com uma coroa na cabeça. Ao seu redor, os monstros – gigantes balofos e peludos, feiosos mas simpáticos – aprovam a ordem do novo rei e disparam a correr pela floresta, derrubando uma ou outra árvore no caminho. É nesse momento anárquico que Onde Vivem os Monstros (Where the Wild Things Are, Estados Unidos, 2009) – filme do diretor esquisitão Spike Jonze, que estreia nesta sexta-feira no país – segue mais fielmente a obra que o inspirou, o clássico infantil homônimo do americano Maurice Sendak. É uma contagiante exaltação das pulsões mais primitivas – perigosas, até – da infância. Parte do fascínio do livro de Sendak vem do modo como ele mimetizou a imaginação de uma criança em toda a sua autossuficiência: a ilha onde vivem os monstros é um universo à parte, no qual os caprichos e vontades do menino Max (no filme, interpretado com cativante sinceridade por Max Records, de 12 anos) reinam soberanos, libertos das exigências adultas de responsabilidade e bons modos. Em seus filmes anteriores, Quero Ser John Malkovich e Adaptação, protagonizados por adultos cheios de angústias e veleidades artísticas, Jonze já transitava por esses recessos isolados da consciência humana. Onde Vivem os Monstros põe a mesma carga existencial sobre os ombros de um garoto. A bagunça que Max e os monstros promovem na sua floresta – significativamente situada em uma ilha – serve para afugentar a solidão. Em teoria um filme para crianças, Onde Vivem os Monstros é, na verdade, um filme sobre a infância, que será mais bem compreendido e apreciado por adultos.
Lançado nos Estados Unidos em 1963 – e só no ano passado publicado no Brasil, pela Cosac Naify –, Onde Vivem os Monstros vem encantando sucessivas gerações de crianças. Vendeu 18 milhões de exemplares no mercado americano. É o livro de um ilustrador, com imagens de um surrealismo exuberante amparadas por uma narrativa simples que se desenvolve em poucas frases. Vestido com uma inexplicável fantasia de lobo, Max promove a arruaça em sua casa e, repreendido pela mãe, ameaça devorá-la, como faria um lobo de verdade. De castigo, é mandado para o quarto, sem jantar – mas o quarto se transfigura em outro mundo, no qual Max veleja em um barco até a ilha onde é coroado rei dos monstros. Ele acaba se cansando da ilha e dos monstros e resolve voltar para "algum lugar onde alguém gostasse dele de verdade". Indiferente às súplicas dos monstros para que fique, navega de volta para casa – e eis aí toda a história.
A solidão da fantasia infantil já se encontrava bem representada no livro, no qual só figuram Max e seus monstros (a mãe não aparece nas ilustrações). Escrito a quatro mãos por Jonze e pelo escritor Dave Eggers, o roteiro expande esse enredo enxuto. Os monstros, que no livro não têm personalidades distintas, ganham cada qual seu perfil psicológico – para ficar em três exemplos, Carol (com a voz de James Gandolfini, ator de Os Sopranos) é caloroso mas instável, KW (Lauren Ambrose) se mostra compassiva e maternal com Max, e Judith (Catherine O’Hara) é autocentrada e mesquinha. Essas criaturas são visualmente notáveis – uma conjugação de técnicas "analógicas" (atores vestidos com fantasias peludas) com a mais eficiente tecnologia digital (utilizada para conferir expressividade ao rosto). Esses seres às vezes se comportam realmente como monstros: ameaçam devorar Max ou se desmembram uns aos outros (não, não é um filme para crianças miudinhas). Como rei da ilha, Max tenta pacificá-los com a promessa de construção de uma cidade-modelo, feita de acordo com maquetes construídas, com insuspeita delicadeza, por Carol. Mas essa utopia pueril segue o caminho de suas congêneres adultas: redunda em fracasso e violência. A imaginação, afinal, também conhece seus limites melancólicos.
As picuinhas entre Carol e KW soam como as discussões de um casal humano separado por um fosso de ressentimento. Reproduzem, pode-se supor, os desentendimentos dos pais divorciados de Max. O filme às vezes se desvia da fantasia que o inspira para demorar-se nesses conflitos domésticos vulgares (tendência que Eggers levou ainda mais longe, até o limite da trivialidade, em Os Monstros, romance baseado no filme, que a Companhia das Letras lançou no Brasil). Também há um momento de constrangedor psicologismo: KW engole Max para escondê-lo do enfurecido Carol e, depois, regurgita o menino através de um canal estreito, do qual ele sai todo melecado. Trata-se de uma alegoria óbvia e desajeitada do parto. A despeito desses defeitos, Onde Vivem os Monstros, com suas criaturas mal-educadas e barulhentas, oferece ao espectador a chance de revisitar o lado mais indômito da infância. Toda a sua alegria selvagem, porém, esbarra em uma conclusão meio tristonha: não se pode viver para sempre nas ilhas da imaginação.