segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

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A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.

Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.

Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.

(Retirado do “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa.)

“Com açúcar, com afeto, / fiz seu doce predileto / Pra você parar em casa, / qual o quê! / Com seu terno mais bonito, / você sai, não acredito / Quando diz que não se atrasa / Você diz que é um operário, / sai em busca do salário / Pra poder me sustentar, / qual o quê! / No caminho da oficina, / há um bar em cada esquina / Pra você comemorar, / sei lá o quê! / Sei que alguém vai sentar junto, / você vai puxar assunto / Discutindo futebol / E ficar olhando as saias / de quem vive pelas praias / Coloridas pelo sol / Vem a noite e mais um copo, / sei que alegre ma non troppo / Você vai querer cantar / Na caixinha um novo amigo / vai bater um samba antigo / Pra você rememorar / Quando a noite enfim lhe cansa, / você vem feito criança / Pra chorar o meu perdão, / qual o quê! / Diz pra eu não ficar sentida, / diz que vai mudar de vida / Pra agradar meu coração / E ao lhe ver assim cansado, / maltrapilho e maltratado / Como vou me aborrecer? / Qual o quê! / Logo vou esquentar seu prato, / dou um beijo em seu retrato / E abro os meus braços pra você.”