terça-feira, 1 de junho de 2010

Afinal, acabei!!! Confesso que sei que ainda tenho que fazer alguns ajustes, principalmente na parte final da monografia, mas já entreguei para a Professora Sunes, agora vou corrigindo algumas “coisinhas” e aguardando a opinião do professor Luiz, que vai devolver para a gente no dia 09 de junho.

clip_image001

Escola Superior Professor Paulo Martins

Ângela Maria Campos Michelini

LIVRO DO DESASSOSSEGO DE BERNARDO SOARES

(Uma visão literária sobre a vida moderna)

Sobradinho, DF

2010

Ângela Maria Campos Michelini

Livro do Desassossego de Bernardo Soares

(Uma visão literária sobre a vida moderna)

Monografia apresentada à banca examinadora da Escola Superior Professor Paulo Martins, como requisito parcial para conclusão do Curso de Letras

Orientador: Prof. Dr. Luiz Reis

____________________________

Sobradinho, DF

2010

clip_image003

Fernando Pessoa

Ângela Maria Campos Michelini

Livro do Desassossego de Bernardo Soares

(Uma visão literária sobre a vida moderna)

Monografia aprovada como requisito parcial para a conclusão do curso de Letras da Escola Superior Professor Paulo Martins, pela seguinte banca examinadora:

__________________________________________________

Orientador (a):

__________________________________________________

Orientador (a):

________________________________________________________

Orientador (a)

Sobradinho, DF, ____ de ________________ de 2010.

Dedicatória

Dedico este trabalho a todos os professores que tão bem souberam despertar em mim o amor e o respeito por tantas e tão variadas boas obras literárias que povoaram estes meus anos de estudo.

Agradecimentos.

Em primeiro lugar, devo um agradecimento à minha família, principalmente à minha mãe, Celina Fittel Campos, e à minha tia, Terezinha Fittel de Almeida, a primeira por me ter legado os dois volumes: um deles da Obra Poética e outro das Obras em Prosa de Fernando Pessoa, e à segunda por ter-me iniciado na paixão pelos textos deste autor.

Um amor como o que tenho por este poeta e escritor não desabrocha sozinho, e sempre serei grata à minha grande amiga Eglacy Porto Silva por tantas vezes ter lido comigo as poesias pessoanas, inclusive acredito dever a esta tão boa amiga meu entendimento da importância de Fernando Pessoa para a literatura mundial.

Já na faculdade, através de minha amiga e professora Fabrícia Walace, mais uma vez fui estimulada no meu intuito de desvendar os escritos deste poeta, agradeço então sua atenção e sua sempre competência e profissionalismo ao lecionar Literatura Portuguesa, o que apenas confirmou em mim a paixão pela obra deste fantástico escritor.

Aos meus filhos, agradeço a atenção para tantas vezes em que declamei Pessoa, mesmo sem perguntar das predileções dos dois.

E agradeço também ao Professor Doutor Luiz Reis por seu encorajamento e sua ajuda nesta minha caminhada pelas poesias e textos pessoanos.

Liberdade

Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada.

Estudar é nada.

(Fernando Pessoa)

Resumo

Este estudo pretende apresentar uma leitura da modernidade através da obra Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, texto este resultado das sensações e vivências de Fernando Pessoa, o qual foi um autor inegavelmente inserido no espírito do novo que permeava todas as formas artísticas do início do século XX.

Palavras – Chave:

Livro do Desassossego, Bernardo Soares, Modernidade.


Sumário

Introdução........................................................................................................10

Algumas considerações sobre os conceitos de Moderno, Modernismo e Modernidade.....................................................................................................11

Fernando Pessoa e o Modernismo Português.................................................14

A História do Livro do Desassossego...............................................................20

Fragmentos que contam uma história...............................................................22

Considerações finais.........................................................................................31

Bibliografia.........................................................................................................33

Introdução

O objetivo deste texto é analisar a obra “O Livro do Desassossego” procurando encontrar em suas páginas referências que evidenciem a influência dos problemas da época em que ele foi escrito nas diversas idéias registradas pelo autor. Sendo um texto elaborado entre os anos de 1914 a 1935, enfim, um texto com características essencialmente modernistas, procurar-se-á encontrar ligação entre o estilo fragmentado, a incorporação do cotidiano do autor, as inovações técnicas usadas, as enumerações caóticas e as descrições de uma vida angustiada, dilacerada, depressiva e desassossegada de Fernando Pessoa e os acontecimentos que convulsionavam a realidade dos europeus naquele período de tempo.

Para se alcançar uma boa compreensão dos fragmentos do Livro do Desassossego alguns dados são necessários sobre o contexto histórico e literário em que o mesmo foi escrito, razão pela qual se fará um breve retrospecto da situação política, social e literária em que os autores modernistas portugueses se situavam.

Buscar-se-á apresentar também as características modernistas da estrutura diferenciada dos escritos de Vicente Guedes e Bernardo Soares, por se acreditar que este item é pertinente a qualquer tentativa de elucidação das influências sofridas pelos autores pela modernidade daquela época, quando da escrita dos mencionados fragmentos.

E para completar, procurar-se-á viabilizar algumas elucidações sobre a complexa questão da autoria do Livro do Desassossego, tema controverso, mas que evidencia de maneira ímpar a idéia do novo no fazer literário destes autores.

Algumas considerações sobre os conceitos de Moderno, Modernismo e Modernidade.

Ao se estudar o período em que o texto do Livro do Desassossego foi escrito, é conveniente alguns esclarecimentos sobre os conceitos de moderno, modernismo e modernidade, tendo em vista que estas explicações esclarecerão muitas das questões elaboradas pelos fragmentos pessoanos.

O termo moderno, de acordo com definição vocabular, está intimamente ligado à idéia de algo novo, recente, inovador, algo que revela opiniões e atitudes progressistas, algo relativo a ou próprio da época presente, conforme definições do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras.

Ao se analisar esta palavra, e conforme artigo de autoria de Adriano Duarte Rodrigues vê-se que o termo moderno apareceu pela primeira vez em uma publicação do século VI, em um texto eclesiástico. (RODRIGUES Adriano Duarte, Cultura e Comunicação. A Experiência Cultural na Era da Informação. Lisboa. Ed. Presença. 1994. p. 49).

Vários movimentos literários adotaram nomenclaturas que de alguma forma por si só já explicavam o movimento em si, como por exemplo, o caso do Romantismo, que tem em seu nome a explicação dos princípios norteadores de seu fazer artístico. O que não ocorre no caso do Modernismo, pois ao analisarmos este vocábulo deparamo-nos com o fato de que esta palavra deriva de “moderno” que no dizer do Octavio Paz é um adjetivo vazio:

“Muitos povos e civilizações chamaram a si mesmos com o nome de um deus, uma virtude, um destino, uma fraternidade: Islã, judeus, nipônicos, tenochcas, árias, etc. Cada um desses nomes é uma espécie de pedra de fundação, um pacto com a permanência. Nosso tempo é o único que escolheu como nome um adjetivo vazio: moderno. Como os tempos modernos estão condenados a deixar de sê-lo, chamar-se assim equivale a não ter nome próprio” (Octavio Paz, em Signos em Rotação). ((COELHO, Teixeira. Moderno Pós Moderno Modos & Versões. 5ª. Ed. São Paulo. Editora Iluminuras Ltda. 2005. p. 13)

Para alguns historiadores a era moderna teve seu início no ano de 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos e terminou em 1789, com a revolução francesa, para outros, entretanto, os “Tempos Modernos” são vistos como um período que ainda não acabou, e que pode ser dividido em vários períodos, como por exemplo, Early Modern Times e Later Modern Times, já outro grupo de estudiosos deste tema prefere utilizar a divisão entre moderno e antigo utilizando a idéia das sociedades pré-industriais e sociedades industriais. Entre todos estes estudiosos, porém, uma idéia central permanece a respeito desta nova era: a idéia de que a época moderna deva ser enxergada como um período rico em revoluções sociais, com atenção especial para a substituição do feudo pelas cidades, com todas as transformações inerentes a esta mudança.

E junto com a era moderna, o modernismo se instala na sociedade atual, modernismo este que pode ser explicado, conforme Henry Lefebvre, como “a consciência que cada uma das gerações sucessivas teve de si mesma, a consciência que as épocas e os períodos tiveram de si mesmos.” (COELHO, Teixeira. Moderno Pós Moderno Modos & Versões. 5ª. Ed. São Paulo. Iluminuras Ltda. 2005. p. 15)

Entende-se então o modernismo como algo mais do que uma idéia abstrata, ou como algo apenas conceitual, mas o resultado produzido pelos que de alguma forma engajavam-se na construção do novo, do revolucionário, do atualizado.

O homem atual, então, se depara com esta realidade em sua vida, com o novo, com o revolucionário, com o inovador, e nesta confluência de idéias e atitudes surgem os modernismos, resultantes estes da interação da nova realidade com este novo homem marcado pelos ventos da atualidade. E este mesmo produtor se transforma em ser reflexivo que analisa o curso em que suas produções se inserem, o homem repensa, reflete sobre seus novos conceitos e suas novas produções, surge então a modernidade enquanto crítica ou mesmo autocrítica deste movimento essencialmente progressista, o que é corroborado pelas palavras de Teixeira Coelho em seu livro Moderno. Pós Moderno: “O Modernismo é o fato, a modernidade é a reflexão sobre o fato”.( (COELHO, Teixeira. Moderno Pós Moderno Modos & Versões. 5ª. Ed. São Paulo. Editora Iluminuras Ltda. 2005. p. 17)

O modernismo começou no início de século XX. Havia, naquele momento, um sentimento de insatisfação nos jovens artistas com a arte como ela se apresentava. Os velhos modelos dos movimentos artísticos anteriores, tais como o Romantismo, o Realismo e o Parnasianismo já apresentavam sinais de falta de caminhos para a construção de algo novo e os artistas se ressentiam da dificuldade de criar nos parâmetros da arte tradicional. Em contrapartida, o mundo vivia um momento de contínua transformação. Em todas as áreas do conhecimento humano, as novidades ocupavam o lugar do tradicionalismo: na política, velhas monarquias caiam e davam lugar a regimes modernos, na indústria, o artesanato cedia espaço às grandes fábricas, na medicina, o prático e o farmacêutico transformava-se no médico, na sociedade uma nova classe social, a burguesia, ocupava o espaço da aristocracia decadente, a filosofia renovava-se com as idéias de Nietzsche, Marx, Goethe, Kant e Schopenhauer, surgia a psicologia com os estudos de Freud, a vida do ser humano passava por transformações radicais fomentadas por uma nova ordem social que se estabelecia na esteira do progresso.

Neste contexto o mundo presencia o aparecimento, na Europa, de vários movimentos que antecedem e originam o Modernismo, principalmente na Literatura, são as Vanguardas Européias: o Cubismo de Picasso e Miró, o Futurismo de Marinetti, o Dadaísmo de Tristan Tzara, Hugo Ball e Hans Arp e o Surrealismo de André Breton. A maior característica destas vanguardas foi seu caráter provocador, experimental, inovador e destruidor. O principal objetivo destes movimentos artísticos era o combate ao racionalismo e ao objetivismo das teorias científicas do Realismo, do Naturalismo e do Parnasianismo. As vanguardas pregavam o irracionalismo e objetivavam uma análise mais subjetiva do ser humano, em que o que importava ser analisado era o íntimo das criaturas.

Várias serão as características do Modernismo, este movimento poderoso e que atingiu diversos segmentos da arte do século XX: em primeiro lugar é interessante destacar a atitude de irreverência dos artistas deste período com os padrões estabelecidos; quanto à arte poética, assiste-se a implantação do verso livre, sem rima e sem estrofes pré-estabelecidas; percebe-se um movimento pleno de reação contra o que passou, contra o clássico nas artes, contra a arte sem movimento; assiste-se a implantação de uma linguagem mais hermética, em que muito mais se diz pela sugestão do que pela clareza absoluta; evidencia-se a troca da comunicação das idéias através da forma elaborada pela forma direta, pela linguagem do dia-a-dia; em todas as construções literárias deste período percebem-se várias inovações técnicas na forma de escrever; encontra-se cada vez mais o cotidiano como enfoque de vários artistas e literatos; a linearidade do tempo dá lugar a uma enumeração caótica; nos textos literários encontra-se cada vez mais o uso da descrição do fluxo da consciência; o vocabulário se transforma, com a inserção e utilização de novas palavras tais como máquina, produção, proletariado, revolução, sentido, autenticidade, aço, fábrica, automóvel, arquitetura funcional, luz elétrica; o cinema se torna uma realidade inserindo o movimento como novo elemento das criações no campo das artes.

O Modernismo afirma-se não apenas como um produto de uma evolução estética, mas também como um novo estado de espírito da humanidade. Evidencia-se o fato de que o Modernismo transcende apenas uma influência nos processos criativos, ele se apresenta como a resposta da sociedade através de seus artistas às grandes mudanças ocorridas na vida de todos os seres humanos. O antigo foi inexoravelmente posto de lado, vive-se a modernidade, respira-se o novo e como resultado de tantas mudanças surge forte e complexa esta nova realidade artística.

Fernando Pessoa e o Modernismo Português

O primeiro grupo modernista em atividade em Portugal foi composto por Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor, jovens que apesar de portugueses, foram influenciados pela cultura de outros países da Europa: o escritor Fernando Pessoa havia vivido um pouco de sua infância e toda a sua juventude na África do Sul, sob influência da cultura inglesa, Mário de Sá Carneiro passara os anos de 1913 a 1916 em Paris, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor traziam de Paris as novidades que aconteciam na Literatura e no Futurismo de Marinetti. À união destes jovens e à soma destas influências fizeram aparecer em Portugal uma arte cosmopolita, que exalava as mudanças que ocorriam por todo mundo civilizado.

No ano de 1915, outro grupo de jovens, entre os quais estavam novamente Fernando Pessoa, Augusto de Santa-Rita Pintor, Almada Negreiros e Mário de Sá Carneiro, além de Raul Leal, Luís de Montalvor, Rui Coelho, Tomás de Almeida, Alfredo Guisado, Armando Cortes-Rodrigues e Ronald de Carvalho fundam uma revista que servirá “de porta-voz e concretização de seus ideais estéticos, em consonância com o que vai no resto da Europa” (MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa” 33ª Ed. São Paulo. Ed. Cultrix p.239), o semanário Orpheu, no qual os Literatos “põem-se a criar uma poesia alucinada, chocante, irritante, irreverente, com o fito de provocar o burguês, símbolo acabado da estagnação em que se encontra a cultura portuguesa.” (MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa” 33ª Ed. São Paulo. Ed. Cultrix p.239).

Estas foram algumas das influências marcantes ocorridas na vida do poeta e escritor Fernando Pessoa, que deflagra um processo peculiar na sua produção e na sua arte, o que leva o crítico Massaud Moisés a afirmar:

“Fernando Pessoa é dos casos mais complexos e estranhos, senão único dentro da Literatura Portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreendê-lo e julgá-lo como merece. Por ora, mal decorridos cinqüenta anos de sua morte, é ainda muito cedo para aquilatar-lhe a importância, o significado da obra que escreveu e a influência exercida enquanto viveu e depois de morto. Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passam duma tentativa provisória no sentido de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática.” (MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa 33. Ed. São Paulo. Ed. Cultrix. P. 241)

Ao se estudar o fenômeno Fernando Pessoa, a primeira peculiaridade do poeta que a todos chama a atenção é a diversidade. A obra pessoana é uma obra diversa, e por qualquer sentido em que se encaminhe este estudo, o resultado sempre despertará em seus estudiosos a admiração pela forma como o autor percorreu os meandros da poesia e mesmo os meandros da prosa, que inegavelmente poderá ser acertadamente definida como prosa-poética. Não há apenas uma verdade em Fernando Pessoa. Se em um primeiro momento há uma tese defendida, logo após o autor propõe nova idéia que se apresenta como complemento da idéia anterior e em um determinado momento transforma-se em uma antítese do que foi dito anteriormente. Fenômeno, aliás, que não deve surpreender e que também não desvaloriza ambas as afirmações.

Aos leitores pessoanos, é necessária a compreensão de que o poeta era o fruto de uma era também peculiar de Portugal e do mundo, e que, mesmo tendo assimilado todo o passado lírico de seu povo, também captou a forma inquietante como a humanidade enfrentava as mudanças ocorridas nos primeiros anos do século XX. Através de sua sensibilidade, assimilou de forma dramática a certeza de que aqueles anos seriam marcados por uma profunda e dolorosa crise, tanto de valores como cultural para o povo europeu. Aos que almejam a compreensão do universo pessoano, é necessário a observação do contexto português e da realidade mundial, pois sua obra se constrói além dos limites poéticos, e deságua em cores brilhantes que pintam um painel da realidade da Europa no período pré e pós Primeira Guerra Mundial.

Mas para atingir esta diversidade, para poder assimilar tal complexidade humana, para apreender tantas vivências de certa maneira tão contraditórias, Fernando Pessoa precisa ser todos: todos que existiram, todos que existem e todos que existirão. Era necessária a compreensão da humanidade, uma compreensão que apenas pode ser conseguida ao se incorporar tantas personalidades, tantos “eus”, tantos destinos, tantos desejos, tantas lutas, tantos resultados, e Fernando Pessoa consente em tal divisão, como afirma pela voz de Álvaro de Campos: “Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me”. (PESSOA, Fernando. Obra Poética. Volume Único. Poesias de Álvaro de Campos. p. 345)

E nascem Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, três poetas completos, diversos nas formas de escrever, diversos nas peculiaridades, diversos nas identidades, mas habitando nosso poeta, o qual também ousa desfiar suas idéias em poesia. Deste desdobramento surge um preço, e Pessoa paga-o: o preço da desintegração, da despersonalização, do fim de sua unidade.

Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos são personagens livres, autônomos em relação a Fernando Pessoa, o primeiro, médico de profissão, monárquico, de educação clássica e latinista, adepto do Sensacionismo, estoicista e epicurista, poeta horaciano e helenista; o segundo, mestre dos heterônimos, nasceu em Lisboa, mas viveu grande parte de sua vida numa quinta do Ribatejo, sua educação não passou do curso primário, antimetafísico, poeta das sensações, da natureza, de atitude antimistica e pagã; o terceiro, engenheiro naval de profissão, ligado aos movimentos modernistas como o Futurismo e o Sensacionismo, é o poeta que escreve as sensações da energia e do movimento bem como as sensações de sentir tudo de todas as maneiras.

Diante da heteronímia, esta novidade na poesia européia, novamente Fernando Pessoa avança no tempo e apresenta aos seus leitores a modernidade, nada mais é algo definido, realizado, decidido, tudo está em mutação. O tempo avança não mais de forma linear, mas em grandes saltos, recuos, negações, o poeta se doa e se nega ao mesmo tempo em que absorve as emoções. Há uma viagem a ser feita e se a impossibilidade se apresenta para alguns, sempre outros ocuparão os espaços vagos na medida em que nada deve ficar sem ser dito, sentido, experimentado, definido e progressivamente colocado em versos que resumem toda a dolorosa experiência de um povo que entende que “Navegar é preciso, viver não é preciso...” e que Pessoa transforma em “Viver não é necessário; o que é necessário é criar.” (PESSOA, Fernando. Obra Poética. Volume Único. p. 15)

Ao heterônimo Alberto Caeiro a poesia se apresenta “em verso prosaicamente livre contra o transcendentalismo saudosista, evidenciando que “o único sentido oculto das coisas / É elas não terem sentido oculto nenhum”. (SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa 17ª Ed. Porto. Bloco Gráfico Ltda. 2005. p. 997) .

Ao heterônimo Ricardo Reis a poesia se apresenta “em estilo que, pelas formas estróficas e loci communes clássicos pode parecer neo-arcádico (embora apresentando por vezes densidade poética revivificadora de modelos horacianos). (SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa 17ª Ed. Porto. Bloco Gráfico Ltda. 2005. p. 998). E o poeta escreve: “Assim façamos nossa vida um dia, / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noites antes e após / O pouco que duramos.” (PESSOA, Fernando, Odes de Ricardo Reis, 5ª Ed. São Paulo, Cia. Brasileira de Impressão e Propaganda, 1974. p. 259)

Ao heterônimo Álvaro de Campos a poesia se apresenta “em odes em verso livre entusiástico, à maneira de Walt Whitman, a sabedoria futurista da sem razão, da energia humana, da vida jogada por aposta; ou então o anseio, mais whitmaniano ou sensacionista, de “sentir tudo de todas as maneiras”. (SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa 17ª Ed. Porto. Bloco Gráfico Ltda. 2005. p. 998). O que fica evidente no poema “Tabacaria”: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. (PESSOA, Fernando, Poesias de Álvaro de Campos, 5ª Ed. São Paulo, Cia. Brasileira de Impressão e Propaganda, 1974. p. 393)

Outros heterônimos e semi-heterônimos devem ainda aparecer quando da divulgação total de seus trabalhos, os quais esperam a análise de estudiosos, guardados na Biblioteca Nacional de Lisboa, por ora este texto se deterá nestas duas novas criações: Vicente Guedes e Bernardo Soares, os responsáveis pela escrita do “Livro do Desassossego”.

Quanto a Vicente Guedes, até hoje pouco se sabe além de sua participação na escrita de vários textos em prosa que compõe a mais nova charada pessoana: O Livro do Desassossego. É dele o fragmento “Na floresta do Alheamento”, este publicado no volume IV da revista A Águia, de 1913 e “Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera”. Consta também seu nome como autor de mais alguns fragmentos, porém, na opinião do poeta, escritor e crítico literário Jorge de Sena, a fase do “Livro do Desassossego” pertencente a Guedes é uma fase “muito simbolista e esteticista”, concebida anteriormente à “descoberta da heteronímia profunda de que a grandeza de Pessoa se faria” (antes, pois, de 1914), marcadas por fragmentos que, à exceção de “Na floresta do Alheamento” e “Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera” são apenas trechos inacabados ou nem sequer saídos de um embrionário começo, escritos de 1912 a 1914, com recorrências até 1917. (SENA, 1982. p. 236).

Mas inegavelmente, Vicente Guedes deve ser estudado como um dos autores do Livro do Desassossego, até pela atenção que Fernando Pessoa dedicou à sua atuação como autor, no “Prefácio” elaborado para a primeira edição do “Livro do Desassossego” de autoria de Fernando Pessoa:

“criou definitivamente a aristocracia interior: aquela atitude de alma que mais se parece com a própria atitude de corpo de um aristocrata completo (Livro do Desassossego, v. 1, p. 19). Isolou-se do mundo num apartamento de 4º andar da Baixa lisboeta, morada que mobiliou com requinte decadente – “cuidara especialmente das cadeiras – de braços, fundas, moles -, dos reposteiros e dos tapetes (Livro do Desassossego, v. 1, p. 17-8) -, requinte adequado “para manter a dignidade do tédio” segundo dizia (Livro do Desassossego, v. 1, p. 18).

Já sobre Bernardo Soares, o autor que dá prosseguimento à construção deste livro póstumo, Fernando Pessoa foi mais específico e o descreveu de maneira detalhada, como um conhecido com o qual teve contato nos restaurantes de Lisboa. Bernardo Soares era um guarda-livros e abordou Fernando Pessoa quando este jantava, conversaram e assim se estabeleceu uma camaradagem entre os dois:

“Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.” (Livro do Desassossego, p. 39)

Fernando Pessoa continua uma promessa, mesmo após 75 anos de seu falecimento. Sua presença entre nós se faz também através de seu legado, pois deixou-nos vários escritos inéditos, os quais estão sob a responsabilidade do governo português na Biblioteca Nacional de Lisboa. Vários estudiosos pessoanos dedicam-se ainda agora à análise deste material, buscando encontrar a melhor maneira de apresentar à humanidade as novas palavras do gênio português. E entre eles está o Livro do Desassossego, obra póstuma encontrada entre seus papéis, anos depois de sua morte, e que foi trazida ao conhecimento do grande público através da organização de vários interessados em difundir a maestria do famoso escritor e poeta português.

A história do Livro do Desassossego

Quando Fernando Pessoa faleceu, em 1935, o mundo o conhecia apenas através de poucas publicações, conforme enumera Massaud Moisés, em seu livro “A Literatura Portuguesa”:

“Em vida, além de Mensagem (1934), Fernando Pessoa apenas publicou versos ingleses (Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions, 1920), reunidos nos English Poems, I, II e III (1921) e alguma prosa: Aviso por causa da Moral (1923) e Interregno-Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928). A maior parte de sua produção estampou-se em jornais e revistas ou manteve-se inédita”. (MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa 33. Ed. São Paulo. Ed. Cultrix. P. 247)

Ao ser examinado o espólio do escritor, todos se depararam com vasto material, entre o qual estavam dois envelopes pardos subscritos como “Livro do Desassossego”. Inicia-se aí uma nova empreitada para dar a conhecer ao mundo a continuação do trabalho de Fernando Pessoa. Sobre este material se debruçam uma infinidade de estudiosos que lutam para organizar o mais próximo possível de um ideal de perfeição os textos legados por um dos maiores gênios da literatura. O primeiro a se ocupar com os famosos manuscritos com a finalidade de publicá-los foi o poeta, escritor e crítico literário Jorge de Sena que escreveu um texto considerado como leitura obrigatória para os que se interessam pelo escritor português. Entre os outros que se ocuparam deste tema, os pioneiros do estudo do Livro do Desassossego, encontram-se João Gaspar Simões, Luís de Montalvor, Georg Rudof Lind, Jacinto do Prado Coelho, Teresa Rita Lopes, Maria Aliete Galhoz, Tereza Sobral Cunha, Ivo Castro, Cleonice Berardinelli, José Clécio Basílio Quesado, Luciana Stegagno Picchi, Antonio Quadros, Leyla Perrone-Moisés e Richard Zenith.

Ao se pesquisar o resultado das incursões destes estudiosos pelo material encontrado no espólio de Fernando Pessoa encontra-se vários resultados, melhor dizendo vários “Livros do Desassossego, o que leva à constatação do quão pertinente foi o título escolhido pelo autor, pois mesmo depois de tantos estudos por pessoas de tão comprovada competência técnica e literária, fica clara a perplexidade de seus estudiosos sobre a forma como Pessoa elaborou seus escritos de forma a o tornar algo tão moderno que encarna a própria idéia de algo que se transforma constantemente a ponto de interagir intimamente com a própria idéia de liquidez de nossa era.

Chama a atenção, também, a forma final encontrada por vários destes estudiosos para a publicação da obra de Fernando Pessoa/Vicente Guedes/Bernardo Soares, para alguns, o material encontrado deveria ser organizado observando-se as datas dos textos, para outros a forma ideal seria justamente a inobservância destas datas, já para outros a melhor forma de apresentação seria através de “manchas temáticas” e mesmo outros propõem que se faça uma avaliação dos textos encontrados e apenas os considerados terminados e datados devam constar do resultado final. Independentemente desta discussão, percebe-se o quanto o texto de Vicente Guedes/Bernardo Soares consegue lançar seus estudiosos em um estado constante de perplexidade e dúvidas, enfim, em um estado de desassossego...

E ao se comparar algumas das edições existentes do Livro do Desassossego em língua portuguesa, percebe-se que ao lado da beleza com que o autor brindou seus leitores postumamente, também legou a quem se interessar por seu trabalho a chance de usufruir de um texto quase mágico, que se reinventa a cada leitura, que possibilita a seus leitores a liberdade total no ato de lê-los, uma obra no dizer de Leyla Perrone-Moisés:

“sempre em movimento e mutação, que sua forma verdadeira e definitiva será sempre uma nostalgia, um anseio de unidade e coerência como aquele que o indivíduo Pessoa alentava, sabendo-o irrealizável”. (PERRONE – MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro. 3ª Ed. rev. e ampl. São Paulo. Martins Fontes. 2001. p. 212 – 213)

Fragmentos que contam uma história

A época em que Fernando Pessoa escreveu seus textos para o Livro do Desassossego, através de suas criações literárias Vicente Guedes e Bernardo Soares, compreende os anos de 1914 a 1935, anos estes que ficaram conhecidos como integrantes do “Século Sangrento”, nome adotado para o século XX em decorrência de acontecimentos traumáticos acontecidos, como, por exemplo, as Grandes Guerras Mundiais, a Revolução Russa de 1905, a Guerra Civil Espanhola e outros acontecimentos que ocasionaram uma grande mortandade no planeta. O historiador Eric Hobsbawn considerou este período como a “Era dos Extremos”, a qual teve seu começo com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Neste período, o mundo assistiu a uma notável mudança na maneira como um grande número de pessoas vivia.

Também na literatura os ecos destas mudanças são sentidos com movimentos literários que acompanham as dúvidas, as angústias e os novos anseios das sociedades européias. É neste contexto que Fernando Pessoa através de seu heterônimo Vicente Guedes e seu semi-heterônimo Bernardo Soares inicia uma nova forma de registro do dia a dia de sua vida, um diário atípico, no dizer de Leyla Perrone-Moisés, “um diário íntimo aparentemente tão desnudado”. (PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa aquém do eu, além do outro. p. 224). Neste contexto o autor inicia o registro de suas sensações, das dúvidas, dos medos, das angústias, das crises depressivas, do dilaceramento de sua personalidade, da negatividade, e em certos momentos até da passividade que o acomete quando do enfrentamento de tantas situações dolorosamente novas.

E então encontramos nas páginas do Livro do Desassossego o registro das impressões destes autores, característica bem moderna da literatura daquele período, sobre vários acontecimentos e situações que compreendiam o dia a dia do escritor poeta: suas dúvidas quanto à religiosidade diante das novidades daquela era, seu isolamento na nova ordem que aos poucos se instalava, sua angústia diante de tantas mudanças abruptas, sua situação de homem moderno que sente a nostalgia da saudade de um tempo acabado, sua presença em um mundo vazio mesmo fazendo parte de uma grande multidão, sua resposta ao dilaceramento dos antigos vínculos que diante da nova ordem social se esfacelavam com enorme rapidez, suas crises de identidade ao não mais se reconhecer naquele turbilhão de novidades, e principalmente um grande tédio, o tédio cansado diante de tantas situações dolorosas para uma alma sensível.

A crise enfrentada pelo ser humano deste período no âmbito da religiosidade é apresentada no primeiro fragmento do Livro do Desassossego organizado por Richard Zenith. O autor trata da descrença do ser humano diante da idéia de Deus. Convém relembrar que existiam nos jovens escritores modernistas sentimentos ambíguos quanto à idéia antiga de religião. Embora Portugal fosse, e o é até hoje, um país essencialmente católico, com bem mais da metade de sua população voltada para as práticas do cristianismo, a Europa como um todo passara por mudanças profundas, com o Iluminismo e o advento da modernidade.

Fernando Pessoa, em sua “Ficha Pessoal”, esta datilografada e assinada pelo escritor em 30 de março de 1935, e posteriormente publicada como introdução ao poema À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais, em 1940, informava ser um cristão atípico, ou seja, alguém que tinha uma crença, mas não se adaptava aos preceitos religiosos clássicos, o que indubitavelmente deve ter influenciado algumas das características de suas criações literárias. Nela, ele declara ser:

“cristão gnóstico e, portanto, inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas e, sobretudo, à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.” (Fernando Pessoa no seu tempo, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1988, PP. 17 – 22).

Na obra deste célebre escritor português, o tema “religião” é abordado através de fragmentos de vários de seus heterônimos, e como a multiplicidade é uma constante em sua obra, também sua fé mostra-se inquieta e complexa, o que se constata no trecho abaixo reproduzido do Livro do Desassossego, que corrobora a proposição contida em outros fragmentos que de alguma maneira relatam a perplexidade e a análise filosófica do fenômeno da crença em um Deus pelos autores modernistas, neste caso, Vicente Guedes e Bernardo Soares.

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber por quê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, aquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. P. 45).

E o autor continua a registrar suas impressões sobre a evolução de seu misticismo, afirmando não saber “o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão (...)” (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. p.46) e declarando sua posição quanto à seriedade destes temas e o desfecho que estas inquietações lhe causam, inclusive comparando sua vida à transitoriedade de uma estada em uma estalagem onde apenas se aguarda “a diligência do abismo”, (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. p. 46) abismo este que é comparável em objetivo ao nada que ele sabe estar em seu destino, e que assim como a noite, inevitavelmente chegará e o arrebatará.

Em outro trecho do livro o autor comenta novamente sua situação de alijado do processo de crer, e percebe-se, inclusive, que o fenômeno para ele não é pessoal, porém de toda a humanidade, pois aquela sociedade vivia o resultado de novos tempos, causados pelas várias mudanças que convulsionavam a forma de organização social da Europa no limiar do século XX. Existe uma reflexão sobre a transferência do ato de acreditar, são enumerados sucedâneos para a fé religiosa através de “outras formas de ilusão”, conforme se percebe abaixo:

Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.

Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras regiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.

Nós perdemos essa, e às outras também. (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. p. 289).

E o autor continua com sua opinião sobre a situação da humanidade no que tange ao ato de crer, definindo a orfandade que atinge a raça humana quando esta perde a ilusão em um criador e mentor espiritual. Neste momento a ancestralidade portuguesa emerge com todo o ímpeto e ele compara a si e a seus contemporâneos aos desvalidos marinheiros quando estes perdiam sua bússola e o caminho de um porto seguro:

“Nós encontramo-nos navegando, sem a idéia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.” (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. p. 289).

E assim o autor que se desincumbiu de registrar este diário atípico, permeado de novas formas de dizer se volta para vários temas presentes nas preocupações dos escritores daquela época. A situação solitária do ser humano daqueles tempos é comentada no trecho número 6, no qual o autor enumera o pouco que desejava da vida, e reconhece que este mesmo pouco, diante de época tão convulsionada por novidades de tão díspares tipos, lhe foi negado, e neste fragmento percebe-se uma melancolia saudosa das coisas simples de outrora, quando os desejos dos homens se restringiam às coisas que a própria natureza prodigamente facultava aos que se detinham na contemplação de suas maravilhas. Neste trecho o autor enumera “uma réstia de parte de sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim” (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. p. 50) como coisas a que dificilmente se terá acesso na atualidade, até mesmo pela complexidade alcançada pelas características da modernidade.

O autor sofre, e retira-se para o mais recôndito de sua alma/quarto, e em sua solidão reconhece-se isolado dos destinos do mundo, e reconhece o mundo como insensível aos sofrimentos dos homens modernos, e percebe que suas palavras apenas servirão de registro aos sentimentos de milhares de outros seres humanos que como ele encontram-se perplexos com a forma como a vida de repente começa a se desenrolar:

Escrevo, triste, no quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se, a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha no destino quotidiano ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. p. 50).

Em outro momento destas reflexões o autor aborda sua relação com a Literatura, e num posicionamento particularmente modernista deixa entrever que, diferentemente dos escritores do passado, o ato de escrever para ele significa mais que a simples transcrição de um fato ou sensação, fica evidente que nos registros do Livro do Desassossego o autor ocupa-se com especial atenção à busca da linguagem perfeita, conforme afirma Leyla Perrone-Moisés: “O objetivo primordial de Bernardo Soares não é registrar estados de alma, mas usá-los como pretextos de uma busca literária.” (PERRONE-MOISES, Leyla. Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo. Martins Fontes. 2001).

Neste diário pessoal, a explicação sobre o que é literatura deixa claro que antes de um simples registro de alguns acontecimentos, o autor se dispõe a transformá-la em uma arte que transcende a simples descrição, e que se transforma em uma apurada forma de manter a integridade e afastar qualquer possibilidade de mácula sobre o que se está descrevendo:

A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira. (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. p. verificar).

E diante destes trechos, pode-se afirmar que muito mais que simples registros da vida de seus autores, o Livro do Desassossego prima por ser uma forma avançada de manter incólume vivências e sofrimentos, sem que se corra o risco da deturpação que principalmente o tempo imprime aos acontecimentos em um mundo em constante transformação.

A forma como o autor se detém sobre questões angustiantes da humanidade e as registra em seu livro/diário é marcada por uma busca incessante pela perfeição no escrever através de uma apurada técnica literária, o que novamente verificamos ao ler o fragmento número 157, no qual o autor divaga sobre seu sonho de “criar dentro de mim um estado com uma política, com partidos e revoluções, e ser eu isso tudo, ser eu Deus no panteísmo real desse povo-eu, essência e ação dos seus corpos, das suas almas, da terra que pisam e dos atos que fazem.” (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. p. 172), o que acarreta uma sua reflexão sobre a força existente nas imagens literárias criadas através de recursos estilísticos, no caso, metáforas:

Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana. Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de pavor, tão nitidamente gente eu os sinto, tão recortados de encontro aos muros do meu quarto, na noite, na sombra, (...) Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo — é impossível ocultar-lhes o som — é absolutamente o de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente. (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. p. 172).

E assim verifica-se que realmente a importância da forma de se escrever, para os autores do Livro do Desassossego transcende a preocupação com o tema que é explicitado, neste livro o ato de escrever transforma em coisas vivas e totalmente libertas da corrosão temporal os registros nele contidos efetuados por autores de uma era em que a principal característica inegavelmente era a transformação de tudo que existia.

Dando continuidade às suas proposições sobre a arte da escrita, percebe-se no fragmento número 259, anexado abaixo, o prazer que acomete este autor quando o mesmo se utiliza da língua portuguesa para doar à literatura suas mais belas criações, sempre carregadas de denso estilo peculiar:

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem sequer mental ou de sonho —, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. p. 254).

Além dos neologismos existentes neste texto, além das texturas tecidas pela prosa do desassossego, além da poesia líquida que verte de cada parte deste livro, o autor ainda brinda seus leitores com definições sobre o que é escrever, sobre o que é música, sobre o que são as artes visuais e a literatura:

Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida – umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.

Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de idéias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso. (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. p. 140).

Mas não só da arte de escrever e das opiniões dos autores sobre a literatura se compõe o Livro do Desassossego. Nele, em vários de seus trechos, Vicente Guedes e Bernardo Soares também deixam registrado seus desconfortos em relação a vários aspectos da modernidade, e em um deles os autores evidenciam suas opiniões sobre a forma como o mundo se povoava de forma desordenada, com o advento das grandes migrações dos campos para os centros urbanos. Nestes tempos em que o livro foi escrito ocorre um processo de modernização também na forma como as estruturas sociais se equacionavam tanto nas áreas econômicas, políticas e sociais: sob o advento da modernização cada vez maior as cidades tornam-se palco principal de vários dramas inerentes aos grandes aglomerados de pessoas nesta era da industrialização. Refletindo sobre este avançar caótico que impera ao seu redor, o autor escreve:

“Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluida da vida! Na grande praça ao centro da cidade, a água sobriamente multicolor da gente passa, desvia-se, faz poças, abre-se em riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos vêem-se desatentamente, e construo em mim essa imagem áquea [sic] que, melhor que qualquer outra, e porque pensei que viria chuva, se ajusta a este incerto movimentos.” (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. 2ª reimpressão. São Paulo. Companhia das Letras. p.112).

A alegoria utilizada pelo autor, em que a grande multidão das cidades se assemelha a um rio caudaloso e irrefreável que a tudo arrasta em seu movimento demonstra a forma como o autor percebe e reage a estas situações. Há um desatino percebido em todas estas evidências que demonstram o lento caminhar da vida da humanidade para caminhos que cada vez mais se afastam da rota escolhida pelos autores. E o autor declara-se entre penalizado e indiferente quando afirma: “Vim parar aqui sem razão, como tudo na minha vida.” (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. P. 112).

E assim Vicente Guedes e Bernardo Soares caminham pela prosa do Livro do Desassossego, muito mais escrevendo que vivendo conscientes da inadequação do mundo aos desejos de alguém que pretendia apenas viver através das palavras, de alguém para quem o sonho ocupava o local da realidade, e que afirmava de forma sábia e triste: “Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida.” (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. P. 120).

Considerações finais

Texto denso, carregado de emotividade, e que transmite aos seus leitores todas as angústias vivenciadas pelos autores Vicente Guedes e Bernardo Soares, este livro não é apenas um dos mais modernos da literatura portuguesa, mas também uma prova documental da realidade vivenciada pelos artistas modernistas do início do século XX.

O Livro do Desassossego apresenta a característica de retratar a forma como uma parcela considerável da humanidade reagia aos avanços tecnológicos e as mudanças ocasionadas por estas novidades na forma como as pessoas viviam no Velho Continente. O autor brinda aos que se detém na leitura de suas páginas amarelecidas pelo tempo com imagens de um frescor ímpar e eivadas por sensações que repercutem no mais íntimo daqueles que vivenciam uma era em que o caos e a tecnologia são fatores de importância inquestionável.

Encontra-se neste livro questões que até hoje palpitam sem uma resposta conclusiva, existe naquele texto muito das dúvidas e angústias que até hoje assombram o homem contemporâneo, e na afirmação de Ezra Pound de que “Os poetas são as antenas da raça” encontramos a explicação do porque da atualidade incrível dos escritos do Livro do Desassossego: nele, Vicente Guedes e Bernardo Soares registraram as vozes do porvir, nele ouvem-se as dúvidas da atualidade, nele lêem-se todos os medos da geração moderna.

Através dos escritos de Vicente Guedes e Bernardo Soares, Fernando Pessoa nos fala de suas sensações quando descreve a forma como viveu as mudanças ocorridas em sua existência pelas transformações que aconteciam no mundo. Reconhece-se a angústia do homem atual quando se lê “Toda aproximação é um conflito”, ou “De que coisa essencialmente divina são os castelos que não são de areia?”, ou “Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é somente ser mudado de cela”, ou “Em geral o homem chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura”, ou “Cristo é uma forma da emoção”, ou “Fingir é amar”, ou “Onde está Deus, mesmo que não exista?”, ou “Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. O drama do sentir da vida atual encontra-se na obra Livro do Desassossego, disponível em forma de prosa poética da mais alta qualidade

Sem ser um texto simples, exigindo para seu entendimento um complexo universo referencial ao mesmo tempo ocupa-se de pormenores encontrados em qualquer segmento da vida social das grandes cidades, nele lemos sobre máquinas, religião, literatura, vida, morte, tédio, tempo, sonhos, mas sempre de uma forma tão característica e particular que já se tornou comum o termo “pessoano”, para explicar o trabalho destes autores. E como obra de artistas perfeccionistas, sua leitura encanta e entristece, e deixa em seus leitores ao fim deste contato uma leve sensação de desassossego...

Bibliografia

PERRONE-MOISÉS, Leyla – Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro. São Paulo. Martins Fontes. 2001 (3ª edição, revista e ampliada). 2001

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. 1ª Parte. (Introdução e nova organização de textos de Antonio Quadros). Portugal. Publicações Europa-América, LDA. 1987.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. 2ª Parte. (Introdução e nova organização de textos de Antonio Quadros). Portugal. Publicações Europa-América, LDA. 1987.

PESSOA, Fernando – Livro do Desassossego (organização Richard Zenith). São Paulo. Cia das Letras. 1999.

PESSOA, Fernando – Obra Poética (Organização, Introdução e Notas de Maria Aliete Galhoz). Rio de Janeiro. Companhia José Aguiar Editora. 1974.

MOISÉS, Massaud – Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo. Cultrix. 1998.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. São Paulo. Editora Perspectiva S.A.1991.

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro. Zahar. 2001.

COELHO, Teixeira. Moderno Pós Moderno Modos & Versões. 5ª. Ed. São Paulo. Editora Iluminuras Ltda. 2005.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa 33. Ed. São Paulo. Ed. Cultrix. 1960.

SARAIVA, A. J. e LOPES, Oscar – História da Literatura Portuguesa. Porto. Bloco Gráfico Ltda. 2005.

RODRIGUES, Adriano Duarte. Cultura e Comunicação. A Experiência Cultural na Era da Informação. Lisboa. Ed. Presença. 1994.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Idade_Moderna.

Acessado em 19.05.2010

PESSOA, Fernando. O poeta fingidor/Fernando Pessoa. Apresentação Claufe Rodrigues. São Paulo. Globo, 2009.

PESSOA, Fernando. A Quintessência do Desassossego: seleção de pensamentos do Livro do Desassossego. Organização e Apresentação A.S.Franchini, Carmen Seganfredo, Porto Alegre. Artes e Ofícios. 2007